Há em mim um abismo que não se cala,
um redemoinho que se alimenta das sobras do mundo,
que bebe da solidão dos becos e da voz engasgada das praças.
Carrego cidades inteiras sob a pele,
umas desertas, outras em chamas.
Sou ruína e reconstrução,
sou a fagulha que acende o incêndio
e a água que o apaga com lágrimas.
O caos me habita como pátria sem bandeira,
onde a dor é idioma oficial e o riso, contrabando.
Nessa nação de mim mesma, não há governo senão a dúvida,
não há lei que contenha o espasmo da existência.
Cada pensamento é um levante,
cada memória, uma revolução abortada.
Sou o corpo político do cansaço,
a insurreição do que sente demais.
O caos é meu princípio e minha ruína,
meu laboratório e minha fogueira.
É nele que experimento a matéria do que sou,
sem dogmas, sem altares, sem promessas.
Ali, onde o sentido se dissolve,
descubro que não há salvação nem castigo,
apenas o fluxo inevitável das coisas,
um universo que respira em mim, indiferente e imenso.
Às vezes me sinto estrangeira dentro da própria carne,
como se habitasse um corpo emprestado.
Assisto à minha vida de fora,
como quem observa um filme antigo projetado na parede do tempo.
As cenas passam, eu me reconheço e, ao mesmo tempo, me perco.
Há algo em mim que nunca chega inteira a lugar algum,
um fragmento que vagueia entre o ser e o nada,
tentando compreender o que é existir de tão longe de si.
Dentro de mim, a ordem é um delírio que nunca amadurece.
A lucidez é um cárcere de vidro,
a sanidade, um pacto com a morte lenta.
Quero a vertigem, não o equilíbrio.
Quero o grito que rompe o silêncio,
mesmo que ecoe em vão no deserto das consciências.
O mundo me pede calma,
mas o meu sangue é manifesto, é rua, é grito engasgado.
Sou feita de contradições que não se resolvem,
de sonhos que perderam o rumo no labirinto da razão.
Trago o niilismo tatuado na alma,
mas ainda planto esperança nos escombros.
O caos em mim não é destruição,
é parto contínuo, ferida fértil,
um ciclo onde morro para nascer no mesmo instante.
E talvez seja isso existir:
um eterno ensaio de ser o que não se pode,
um diálogo entre o que resta e o que insiste,
um eco entre o humano e o abismo.
O caos que habita em mim não é meu inimigo,
é minha verdade despida,
meu grito mais honesto,
meu pedido de eternidade num mundo que desaba.
Sou o próprio terremoto que busca repouso,
a flor que cresce do asfalto rachado,
a poesia que insiste em respirar
mesmo com o peso do universo sobre o peito.
E se há um fim em mim,
que ele venha como recomeço,
porque no caos, enfim,
eu existo.
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