Falar de laicidade na escola pública brasileira é tocar numa ferida ainda aberta da democracia. Embora o Estado brasileiro se declare formalmente laico, a presença do ensino religioso nos currículos escolares revela uma contradição persistente entre o que está assegurado juridicamente e o que se materializa no cotidiano das instituições educacionais. A escola pública, que deveria ser espaço de garantia de direitos, pluralidade e liberdade de consciência, torna-se, não raras vezes, um território de disputas simbólicas e ideológicas.

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 19, inciso I, que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. (Brasil, 1988)

Tal dispositivo não é apenas uma formalidade jurídica, mas um princípio estruturante do Estado Democrático de Direito. A laicidade não significa hostilidade à religião, mas a garantia de que nenhuma crença ou ausência dela será privilegiada pelo poder público. Trata-se, portanto, de um princípio de proteção à diversidade e à liberdade de consciência.

Sobre a citação da CF/88 é justamente nesse ressalvamento expresso no inciso final que se concentra uma das maiores ambiguidades da laicidade brasileira. A primeira parte do dispositivo é clara e inequívoca ao proibir qualquer forma de aliança, dependência ou privilégio entre o Estado e instituições religiosas. Trata-se de uma afirmação forte do princípio laico, que visa garantir a liberdade de consciência, a igualdade entre crenças e a neutralidade estatal diante do fenômeno religioso.

No entanto, ao introduzir a expressão “ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”, o texto constitucional abre uma brecha interpretativa que tem sido historicamente mobilizada para justificar a presença institucional da religião em espaços públicos, inclusive na escola. Essa ressalva, embora juridicamente prevista, não é neutra. Ela desloca a laicidade de um princípio estruturante para um princípio condicionado, passível de negociação política e jurídica.

Do ponto de vista crítico, essa colaboração de “interesse público” deveria ser compreendida de forma restrita e excepcional, limitada a situações em que o Estado coopera com entidades religiosas sem qualquer transferência simbólica, pedagógica ou ideológica de poder. Contudo, na prática, o que se observa é a ampliação desse conceito para legitimar ações que ultrapassam a colaboração material e alcançam o campo da formação moral, ética e cultural dos sujeitos.

A liberdade religiosa e a laicidade não são conceitos equivalentes, embora frequentemente apareçam confundidos no debate educacional e jurídico brasileiro. A liberdade religiosa diz respeito aos direitos dos sujeitos e dos grupos sociais, enquanto a laicidade se refere à forma de organização do Estado e às bases ético-políticas que orientam sua atuação no espaço público. Do ponto de vista constitucional, a Carta de 1988 estabelece de modo explícito a liberdade religiosa ao assegurar a liberdade de consciência e de crença, o livre exercício dos cultos e a proteção aos locais de culto, reconhecendo a religião como dimensão legítima da vida social e garantindo que nenhum indivíduo seja perseguido ou discriminado por suas convicções, ou pela ausência delas. Essa garantia inscreve a liberdade religiosa no campo dos direitos fundamentais individuais e coletivos e a vincula à tradição liberal que compreende a crença como matéria do foro íntimo e da vida privada.

Entretanto, a Constituição Federal não proclama de forma direta que o Brasil é um Estado laico. A laicidade emerge como princípio implícito, construído a partir da articulação entre a vedação de relações de dependência ou aliança entre o Estado e instituições religiosas, o princípio da igualdade e a própria garantia da liberdade de consciência. Nesse sentido, como aponta Carlos Roberto Jamil Cury, a laicidade não é um direito dos sujeitos, mas um dever do Estado, condição necessária para que a liberdade religiosa se realize de forma efetiva em uma sociedade plural, pois somente um Estado que não adota nem promove crenças particulares pode assegurar tratamento igualitário a todas as convicções religiosas e não religiosas.

Cunha aprofunda essa distinção ao afirmar que a liberdade religiosa protege a religião contra o Estado, enquanto a laicidade protege o Estado contra a captura religiosa. Quando essa diferença é obscurecida, abre-se espaço para que a liberdade religiosa seja mobilizada como argumento para justificar a presença institucional da religião nas políticas públicas e nos currículos escolares, deslocando a religião do campo da vivência privada para o campo da normatividade estatal. Cunha demonstra que esse movimento não é neutro nem espontâneo, mas resultado de disputas históricas e políticas nas quais grupos religiosos buscam legitimação simbólica por meio do aparato do Estado.

Gramsci contribui decisivamente para esse debate ao compreender o Estado e suas instituições educativas como espaços de produção de hegemonia, nos quais determinadas concepções de mundo se naturalizam como universais. Quando a religião adentra a escola pública, ainda que sob a forma de ensino não confessional, ela passa a operar como visão de mundo legitimada institucionalmente, produzindo consenso e reforçando hegemonias culturais existentes. Nesse sentido, a laicidade não pode ser reduzida à mera tolerância religiosa, mas deve ser compreendida como princípio político que impede que doutrinas particulares se convertam em referência formativa obrigatória.

A partir desses aportes teóricos, torna-se possível sustentar que a Constituição Federal brasileira assegura explicitamente a liberdade religiosa, mas não afirma a laicidade de modo direto. Ela a constrói como princípio implícito e tensionado, cuja efetivação depende de escolhas políticas e institucionais concretas. A confusão entre liberdade religiosa e laicidade fragiliza a democracia, pois transforma um direito individual em justificativa para a ação religiosa do Estado, enquanto a laicidade, ao contrário, é a condição que garante que o espaço público, especialmente a escola pública, não seja apropriado por sistemas de crença específicos, preservando sua função formativa universal, crítica e emancipatória.

Além disso, a própria Constituição, em seu artigo 210, §1º, prevê o ensino religioso como disciplina facultativa nos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. É nesse ponto que emerge a incoerência estrutural. Como conciliar a laicidade do Estado com a presença institucionalizada do ensino religioso no espaço escolar? Ainda que se argumente que tal ensino deva assumir um caráter não confessional, a prática revela que essa neutralidade é, muitas vezes, apenas formal. Em contextos marcados por hegemonias religiosas específicas, o ensino religioso tende a reproduzir valores, símbolos e narrativas de determinadas tradições, em detrimento de outras.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/1996, reafirma essa ambiguidade ao tratar do ensino religioso no artigo 33, definindo-o como disciplina de matrícula facultativa e vedando o proselitismo. Contudo, a simples presença da disciplina no currículo já instaura uma assimetria. A escola pública, enquanto instituição estatal, passa a legitimar o discurso religioso como conhecimento escolar, deslocando-o do campo da vivência privada para o espaço da formação pública. Esse deslocamento não é neutro. Ele carrega implicações políticas, culturais e pedagógicas profundas.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ao propor um ensino religioso pautado no respeito à diversidade e nos direitos humanos, tenta mitigar os efeitos dessa contradição. No entanto, ao fazê-lo, acaba por reafirmar o paradoxo: se o objetivo é discutir diversidade cultural, religiosa e filosófica, por que isso não ocorre de forma integrada às áreas de História, Geografia, Sociologia e Filosofia, que já dispõem de fundamentos teóricos e metodológicos para tal abordagem crítica?

Do ponto de vista teórico, a laicidade pode ser compreendida como condição para a justiça social e para a igualdade de direitos. Autores como Luiz Antônio Cunha e Carlos Roberto Jamil Cury apontam que o espaço público deve ser regulado por princípios racionais e universalizáveis, e não por doutrinas particulares. Quando a escola pública abre espaço para o ensino religioso, ainda que sob o discurso da pluralidade, corre-se o risco de transformar diferenças em hierarquias e convicções pessoais em normas implícitas.

Além disso, a presença do ensino religioso pode gerar exclusões silenciosas. Estudantes que não professam nenhuma religião, ou que pertencem a tradições minoritárias, frequentemente se veem constrangidos, invisibilizados ou obrigados a justificar sua ausência. A facultatividade, nesse sentido, não garante neutralidade; muitas vezes, apenas transfere o ônus da diferença para o estudante.

Defender a laicidade na escola pública não é negar a importância da religião na vida social ou cultural, mas reconhecer que esse debate pode e deve ser tratado em outras áreas do conhecimento, como História, Sociologia e Filosofia, de forma crítica, contextualizada e não normativa. A escola pública não deve formar fiéis, mas cidadãos. Não deve orientar crenças, mas garantir direitos.

Assim, a permanência do ensino religioso na escola pública revela mais do que uma escolha pedagógica: expõe uma tensão histórica entre Estado, religião e educação no Brasil. Uma tensão que exige enfrentamento crítico, sob pena de comprometer o próprio sentido da escola pública como espaço de emancipação, pluralidade e democracia. A laicidade, afinal, não é um detalhe administrativo. É um princípio ético e político que sustenta a convivência em uma sociedade verdadeiramente diversa.

É nesse cenário que o ensino religioso na escola pública se torna profundamente problemático. Ao institucionalizar a religião como componente curricular, ainda que sob o argumento do caráter facultativo ou não confessional, o Estado passa a reconhecer o discurso religioso como saber escolar legítimo. Isso configura, ainda que de forma indireta, uma relação de aliança simbólica entre o poder público e determinadas concepções religiosas, o que tensiona frontalmente a vedação constitucional expressa no próprio artigo 19.

Assim, o ressalvamento constitucional da “colaboração de interesse público”, quando aplicado ao contexto educacional, revela-se um ponto de inflexão perigoso. Ele permite que o Estado, mesmo declaradamente laico, incorpore práticas que tensionam a neutralidade religiosa e deslocam a escola pública de sua função primordial: a formação de sujeitos críticos, autônomos e livres em sua consciência.

Defender a laicidade na escola pública, portanto, não é negar a existência da religião na sociedade, mas afirmar que o Estado não deve transformar crenças particulares em conteúdos institucionais de formação. A laicidade não é uma concessão do Estado às religiões, mas uma garantia do Estado aos cidadãos. Quando relativizada, ela deixa de proteger a diversidade e passa a reproduzir desigualdades simbólicas sob o manto da legalidade.

Assim, a permanência do ensino religioso na escola pública revela mais do que uma escolha pedagógica: expõe uma tensão histórica entre Estado, religião e educação no Brasil. Uma tensão que exige enfrentamento crítico, sob pena de comprometer o próprio sentido da escola pública como espaço de emancipação, pluralidade e democracia. A laicidade, afinal, não é um detalhe administrativo. É um princípio ético e político que sustenta a convivência em uma sociedade verdadeiramente diversa.

Diante de tudo isso, a questão que se impõe não é apenas jurídica ou pedagógica, mas profundamente política e ética: que tipo de formação o Estado brasileiro pretende garantir por meio da escola pública? Uma formação orientada pela universalidade dos direitos e pela crítica racional ou uma formação atravessada por visões particulares de mundo legitimadas institucionalmente? Ao admitir a presença do ensino religioso no currículo, mesmo sob o discurso da facultatividade e da não confessionalidade, o Estado tensiona seus próprios fundamentos e fragiliza o princípio que deveria sustentar a convivência em uma sociedade plural: a laicidade.

A escola pública não é um espaço neutro, mas tampouco pode ser capturada por projetos morais específicos. Como instituição formadora, ela opera na fronteira entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo, e é justamente por isso que deve se orientar por princípios universalizáveis, capazes de garantir a igualdade simbólica entre sujeitos distintos. Quando a religião adentra esse espaço como saber escolar legitimado, corre-se o risco de transformar crenças em normas implícitas e diferenças em assimetrias, ainda que sob a aparência da legalidade e do respeito à diversidade.

Cabe, portanto, perguntar: é possível falar em emancipação, autonomia intelectual e liberdade de consciência quando o próprio Estado autoriza a circulação institucional de discursos religiosos no interior da escola pública? Até que ponto a noção de “colaboração de interesse público” pode ser mobilizada sem esvaziar o sentido político da laicidade? E, sobretudo, quem é protegido quando a laicidade se torna flexível: os sujeitos em sua pluralidade ou as hegemonias já consolidadas no tecido social?

Defender a laicidade na escola pública é, em última instância, defender a própria democracia. Não uma democracia meramente formal, mas uma democracia substantiva, capaz de assegurar que o espaço público não seja apropriado por sistemas de crença particulares, ainda que majoritários. A laicidade não silencia a religião; ela a desloca para o lugar que lhe é próprio, preservando o espaço escolar como território de formação crítica, de encontro com a diferença e de produção de sujeitos livres. Sem esse princípio, a escola pública corre o risco de deixar de ser espaço de emancipação para se tornar, ainda que sutilmente, um instrumento de reprodução simbólica de desigualdades.

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Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018.
CUNHA, Luiz Antônio. Ensino religioso nas escolas públicas: a propósito de um Seminário Internacional. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 97, p. 1235-1256, set./dez. 2006.

CUNHA, Luiz Antônio. A educação brasileira na primeira onda laica: do Império à República. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2017.

CURY, Carlos Roberto Jamil. Ensino religioso na escola pública: o retorno de uma polêmica recorrente. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, p. 183-191, set./dez. 2004.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 2.

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